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  • quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

    150 anos de A Gênese: importância e fidedignidade

    150 anos de A Gênese: importância e fidedignidade

    Antonio Cesar Perri de Carvalho
    Entre as várias obras de autoria de Allan Kardec, com A Gênese completa-se o quinto volume das chamadas Obras Básicas da Codificação. Kardec discorre sobre questões importantes que destaca no subtítulo: os milagres e as predições segundo o Espiritismo; e analisa a Gênese de acordo com as leis da Natureza e a interpretação espírita.
    A edição da Revista Espírita de janeiro de 1868 anunciava que o livro A Gênese estaria à venda no dia 6 de janeiro de 1868. O exemplar desta Revista, de fevereiro de 1868 trazia uma dissertação do espírito S. Luís sobre a nova obra. Surgem notícias sobre novas edições: 2a edição (março de 1868); 3a edição (abril de 1868); e ao longo daquele ano Kardec transcreveu vários trechos dessa nova obra na Revista Espírita. Até a desencarnação de Kardec (1869), existiam quatro edições dessa Obra Básica.1,2
    A propósito das edições subsequentes à partida de Kardec é que surgem algumas dúvidas e polêmicas. Esta questão reapareceu durante reunião da Comissão Executiva do Conselho Espírita Internacional, ocorrida em Bogotá (Colômbia), em outubro de 2017, com divulgação de carta do presidente da Confederação Espírita Argentina e consta a informação de que teria sido motivação de um questionamento em um momento da reunião do Conselho Federativo Nacional da FEB, em novembro de 2017.
    A dúvida reinante é sobre a fidedignidade da versão francesa que serviu de base para as traduções de A Gênese. Já existiam várias controvérsias, mas agora reaparecem principalmente a partir da recente edição de A gênese, pela Confederación Espiritista Argentina, com tradução realizada por Gustavo N. Martínez, a partir da 1a edição francesa, lançada aos 6/01/1868.3
    A propósito, são foram louváveis as providências do presidente da Confederação Espírita Argentina em levar a questão ao CEI, conforme trecho de sua carta, onde registra que: “esclarecer a grave questão, o presidente da CEA solicitou uma pesquisa à sra. Simoni Privato Goidanich, e que foi realizada pessoalmente nos Arquivos Nacionais da França e na Biblioteca Nacional da França, localizadas em Paris, assim como na própria C.E.A. e na Associação Espírita Constancia, de Buenos Aires.”[*] O presidente da instituição prossegue: “Esta pesquisa resultou no livro El Legado de Allan Kardec, editado pela CEA [...] que demonstram que o conteúdo definitivo de  La genèse, les miracles et les prédictions selon le spiritisme é o do único exemplar que foi depositado legalmente durante a existência física de Allan Kardec na Biblioteca Nacional da França e que, portanto, o mestre jamais modificou esse conteúdo, publicado em 1868.”4
    O livro El legado de Allan Kardec, de autoria de Simoni Privato Goidanich, foi lançado na sede da C.E.A., em Buenos Aires, aos 3/10/2017.5
    Henri Sausse, o principal biógrafo de Kardec e dinâmico líder espírita francês, em artigos – um deles intitulado “Uma infâmia” - publicados no jornal Le Spiritisme, em 1884 e 1885, já levantava questões sobre as adulterações na 5a edição de A Gênese e apontou 126 alterações no texto original.5
    Entre muitos estudiosos há a suspeita de que alguns trechos de A Gênese poderiam ter sido alterados provavelmente por Pierre-Gaëtan Leymarie (1827-1901). Este dirigente, com a desencarnação de Kardec, passou a exercer as funções de redator-chefe e diretor da "Revue Spirite" (1870 a 1901) e gerente da "Librairie Spirite" (1870 a 1897). Consta que, na prática, exerceria muita influência na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, cuja presidência era formalmente ocupada pelo Sr. Vautier; e passou a cuidar das edições e autorizações de traduções de obras de Kardec.2 E Leymarie foi presidente da “Sociedade para a Continuação das Obras Espíritas de Allan Kardec”.6
    Como ilustração histórica dessas autorizações há o caso brasileiro das traduções pioneiras das obras de Kardec. No princípio do ano de 1875, Pierre-Gaëtan Leymarie autorizou em carta ao dr. Joaquim Carlos Travassos a tradução das obras de Allan Kardec para o português. Essa missiva foi publicada na íntegra na Revista Espírita, edição de 1875. Joaquim Carlos Travassos (1839-1915) traduziu para o português quatro obras básicas da Codificação, com exceção de A Gênese, em 1875 e 1876, utilizando o pseudônimo de "Fortúnio". As quatro obras foram publicadas pela Editora B. L. Garnier, do Rio de Janeiro.Em biografia sobre o tradutor Travassos, Zêus Wantuil comenta: “[...] a única coisa de interessante a anotar, sem nos referirmos ao bom estilo do tradutor, é o judicioso esclarecimento, de fundo rustenista, que vem na obra ‘O Céu e o Inferno’...”6
    Leymarie teve intensa atuação na França. A 1ª edição da revista Reformador, de janeiro de 1883, noticia que ele representou a França em congresso ocorrido em Bruxelas, objetivando a criação de uma União Espiritualista Universal.7 Há correspondências de Leymarie com a então novel Federação Espírita Brasileira.
    A ação de Leymarie foi polêmica, inclusive foi envolvido no histórico “processo dos espíritas”, relacionado com exploração das chamadas fotos de espíritos, em que foi condenado. Muitos registros constam em livro histórico e esgotado de Berthe Fropo - Beaucoup de Lumière -, uma espírita atuante, fiel aos ideais de Allan Kardec, muito amiga de Amélie Boudet, vizinha e apoiadora desta depois da desencarnação do codificador do Espiritismo.2 No ano de 2017 o citado livro foi traduzido e disponibilizado em edição digital bilíngue: a tradução em português e o original em francês - Beaucoup de Lumière (1884).
    Berthe Fropo aborda o ponto crucial do desvirtuamento doutrinário ocorrido no movimento espírita francês pós-Kardec, comprometendo a continuação das obras do Codificador da Doutrina. Nessa obra histórica fica evidenciado que “com o aval de Amélie Boudet, Gabriel Delanne e Berthe Fropo se lançaram numa investida para reavivar os planos de continuação das obras de Kardec, que nas mãos de Leymarie haviam sido deturpados, por influência de ideologias outras, como o roustanguismo e — ainda mais fortemente — a mística doutrina da Teosofia de Madame Blavatsky e do Coronel Olcott.”2
    Portanto, há indícios para haver suspeitas sobre eventuais alterações promovidas por Leymarie em itens de A Gênese.
    Isso posto, citaremos apenas um item da citada obra em apenas algumas traduções para o português.
    A tradicional edição de A Gênese, traduzida por Guillon Ribeiro (FEB) a partir da 5a edição francesa de 1872, não traz nenhuma informação adicional.8 A edição do Instituto de Difusão Espírita, traduzida por Salvador Gentile, utiliza a mesma edição francesa adotada por Guillon Ribeiro.9
    Na edição da FEB, traduzida pelo Evandro Noleto Bezerra, também a partir da 5a edição francesa de 1872, o tradutor introduz uma nota de rodapé no item 67 do capítulo XV, anotando que há uma diferença com relação à edição de 1868, com Kardec ainda encarnado. Justifica que “ao revisar a obra com vistas à 4a edição, Allan Kardec houve por bem suprimir o item 67 que constava nas edições anteriores”. Nessa nota de rodapé, de número 124, o tradutor Evandro transcreve o item suprimido em outras versões “pelo seu inestimável valor histórico, o item 67 das três primeiras de edições de A Gênese”.10
    Na edição do Centro Espírita Léon Denis, a tradutora Albertina Escudeiro Sêco, se baseia numa 4a edição francesa, de 1868, e introduz o item 67 original, a saber:
    “67. A que se reduziu o corpo carnal? Este é um problema cuja solução não se pode deduzir, até nova ordem, exceto por hipóteses, pela falta de elementos suficientes para firmar uma convicção. Essa solução, aliás, é de uma importância secundária e não acrescentaria nada aos méritos do Cristo, nem aos fatos que atestam, de uma maneira bem peremptória, sua superioridade e sua missão divina. Não pode, pois, haver mais que opiniões pessoais sobre a forma como esse desaparecimento se realizou, opiniões que só teriam valor se fossem sancionadas por uma lógica rigorosa, e pelo ensino geral dos espíritos; ora, até o presente, nenhuma das que foram formuladas recebeu a sanção desse duplo controle. Se os espíritos ainda não resolveram a questão pela unanimidade dos seus ensinamentos, é porque certamente ainda não chegou o momento de fazê-lo, ou porque ainda faltam conhecimentos com a ajuda dos quais se poderá resolvê-la pessoalmente. Entretanto, se a hipótese de um roubo clandestino for afastada, poder-se-ia encontrar, por analogia, uma explicação provável na teoria do duplo fenômeno dos transportes e da invisibilidade. (O Livro dos Médiuns, caps. IV e V.).” E, naturalmente faz uma renumeração, surgindo o item 68 que, nas outras tradições citadas é o item 67.11
    Dessa maneira, são pertinentes os recentes questionamentos surgidos nas acima citadas reuniões. Companheiros do “Le Mouvement Spirite Francophone” confirmaram-nos no final de 2017 que a primeira impressão da 5a edição, revisada, ocorreu em 1872, e verificou-se que muitos trechos foram eliminados da quarta para a quinta, inclusive no capítulo sobre o corpo de Jesus.
    Ao ensejo dos 150 anos de lançamento de A Gênese, seria de fundamental importância o esclarecimento sobre algumas dúvidas que pairam sobre as versões editoriais da significativa obra de Allan Kardec e a tradução para o português do exemplar de 1868, registrado na Biblioteca Nacional da França.


    Referências:

    1) Kardec, Allan. Trad. Bezerra, Evandro Noleto. Revista Espírita. Ano XI. No. 1. 1868. Rio de Janeiro: FEB.

    2) Fropo, Berthe. Trad. Lopes, Ery; Miguez, Rogério. Muita luz. 1.ed. Edição digital: www.luzespirita.org.br; acesso em novembro de 2017.

    3) Kardec, Allan. Trad. Martínez, Gustavo N. La génesis. 1.ed. Buenos Aires: Confederación Espiritista Argentina. 2017.

    4) Carta do presidente da Confederación Espiritista Argentina, Sr. Gustavo N. Martínez, de 14/10/2017, distribuída em reunião do Conselho Espírita Internacional, em Bogotá (Colômbia).

    5) Goidanich, Simoni Privato. El legado de Allan Kardec. 1.ed. Buenos Aires: Confederación Espiritista Argentina, 2017. 440p.

    6) Wantuil, Zêus. Grandes espíritas do Brasil. 1.ed. Cap. Joaquim Carlos Travassos. Rio de Janeiro: FEB. 1969.

    7) Reformador, Ano I, n.1, 21 de Janeiro de 1883, p.1-4.

    8) Kardec, Allan. Trad. Ribeiro, Guillon. A gênese. 1.ed. Cap. XV. Item 67. Rio de Janeiro: FEB. 1977.

    9) Kardec, Allan. Trad. Bezerra, Evandro Noleto. A gênese. 1.ed. Cap. XV. Item 67. Rio de Janeiro: FEB. 2010.

    10) Kardec, Allan. Trad. Gentile, Salvador. A gênese. 53.ed. Cap. XV. Item 67. Araras: IDE. 2008.

    11) Kardec, Allan. Trad. Sêco, Albertina Escudeiro. A gênese. 3.ed. Cap. XV. Itens 67-68. Rio de Janeiro: Ed. CELD. 2010. 


    (Publicado na Revista Internacional de Espiritismo, Ano XCII, edição de fevereiro de 2018, p.21-23)



    [*] Nota: trata-se da tradicional e histórica Asociación Espiritista Constancia, fundada em Buenos Aires no ano de 1877. Os trechos da carta foram traduções livres feitas pelo articulista.